Empreendedorismo ancestral preserva legado de mãe Bernadete
Projeto capacita mulheres através do artesanato enquanto preserva a cultura quilombola e contribui para o desenvolvimento sustentável da comunidade.
Orientador: Prof. Diego Luz
A preservação de um legado implica em ir além da conexão ancestral estabelecida entre um povo, mas no compromisso ético e social dos princípios defendidos por aqueles que lutaram e vieram antes de nós. Mãe Bernadete foi uma importante líder quilombola, que liderou bravamente o quilombo de pitanga dos palmares até 17 de agosto de 2023, quando foi assassinada. Ativista e defensora do desenvolvimento cultural e sustentável da comunidade, ela incentivava e promovia o empoderamento feminino.
A partir da defesa e promoção desses valores surgiu o projeto “Mulheres que Fazem”, uma iniciativa que tem por objetivo empoderar as mulheres quilombolas de Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, Bahia, através de oficinas de artesanato, promovendo autonomia financeira e preservando a cultura do quilombo, enquanto fomenta a economia local através do desenvolvimento sustentável.
Jurandy Pacífico, filho de mãe Bernadete e coordenador geral do projeto, conta que a iniciativa surgiu a partir de sua mãe, que, por conta própria, construiu o ateliê que hoje é usado para empoderar as mulheres do quilombo através do empreendedorismo. Após a morte de mãe Bernadete, Jurandy se deparou com o edital divulgado pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia (SEPROMI -BA) e viu a oportunidade de consolidar o projeto. “Eu coloquei tudo aquilo que minha mãe vinha fazendo no papel, inscrevemos o projeto e fomos aprovados no edital”, afirmou.
Então, em 2024, a iniciativa da líder quilombola foi consolidada, recebendo o nome de “Mulheres que Fazem”, honrando a sua trajetória através de um propósito pelo qual viveu lutando: o protagonismo feminino dentro e fora dos quilombos, através da autonomia financeira proveniente das raízes da terra de pitanga dos palmares. O projeto, inicialmente, contemplou 60 mulheres, mas segue impactando a vida de muitas outras, que viram no artesanato uma chance para transformar suas realidades.
O projeto como mecanismo de fomento sociocultural.
Jurandy afirma que as oficinas realizadas funcionam não apenas como um lugar para engrandecimento pessoal, mas como um espaço de fortalecimento dos laços comunitários da comunidade quilombola. Além disso, ele defende que o projeto cria um espaço de visibilidade e reconhecimento. “A participação das mulheres nessas oficinas fomenta, difunde e promove os saberes e fazeres, e seus materiais produzidos nas oficinas”, disse.
Crédito: Acervo PessoalO projeto é uma importante iniciativa, também, para a preservação da cultura e das tradições do povo quilombola. “Essa preservação cultural é proveniente da manutenção dos saberes e fazeres ancestrais, com oficinas onde os mestres são da própria comunidade. As oficinas são um espaço da transmissão do conhecimento ancestral, valorizando a manutenção da nossa cultura”, afirmou Jurandy, coordenador geral do projeto.
A iniciativa fortalece o desenvolvimento sustentável da comunidade de Simões Filho, uma vez que utiliza como matéria-prima o barro, piaçava e a palha da costa, produtos provenientes das terras quilombolas que são transformados em itens artesanais que são vendidos em feiras e eventos locais, fortalecendo a economia local através do empreendedorismo sustentável.
A educação de geração para geração.
Para além das alunas contempladas, é preciso falar de quem transforma o projeto em realidade, através do conhecimento ancestral. Claudineia Conceição é artesã há 20 anos e aprendeu o ofício dentro do quilombo, onde hoje exerce a função de facilitadora das oficinas do projeto “Mulheres que Fazem”. Mulher quilombola, mãe de seis filhos, avó de sete, nasceu em família quilombola e artesã, que passou o conhecimento de geração para geração.
Para Claudineia, lecionar para sua comunidade e perpetuar o conhecimento artesão é um presente. “Eu sempre ensinei. Aprendi com minha família, ensinei meu marido, ensinei meus filhos e hoje, ensinando as mulheres da minha comunidade, que já conseguem fazer seu sustento através do artesanato através desse projeto, não tem preço, é algo que vou levar para o resto da vida”, disse.
Foi ao ver a animação, o interesse e o impacto do aprendizado na vida de suas alunas, que Claudineia encontrou seu combustível. “Elas querem crescer, não querem ser somente donas de casa, somente mães, querem ter uma profissão, querem aprender”, afirmou. Ao observar as muitas histórias de alunas que hoje já fazem seu sustento inteiramente do artesanato, ela se inspira e reafirma que vale a pena acreditar.
O empreendedorismo como oportunidade de recomeço.
Crédito: Acervo PessoalClaudineia afirma que nunca se afastou do artesanato, ao longo do tempo, ela se aproximou cada vez mais do ofício. E, há dois anos, deixou seu trabalho em uma empresa privada para se dedicar exclusivamente ao artesanato, como empreendedora. Através dos vasos, sousplats, bolsas, porta-pratos e outros diversos itens que faz à mão, ela garante o seu sustento. “Para mim, hoje, empreender vale muito mais a pena, o meu maior foco é o artesanato”, garantiu.
Para Claudineia, o artesanato é mais do que uma oportunidade de sustento e autonomia, mas uma ferramenta de resgate às tradições e à cultura quilombola. “Hoje eu estou mais envolvida com o artesanato, para resgatar minha ancestralidade, resgatar quem sou eu, de onde eu venho, e foi devido ao artesanato que hoje eu tenho um conhecimento melhor da minha história”, pontuou.
Adriana dos Santos é uma das muitas alunas que são beneficiadas com o projeto. Há 10 anos, aprende e trabalha com artesanato. “Eu soube que estava tendo o projeto, e foi isso que me motivou, pois eu estava parada, sem trabalhar, e o ‘Mulheres que Fazem’ me incentivou a voltar”, afirmou. Para ela, o projeto foi uma virada de chave, onde ela consegue garantir uma renda extra para sua família.
Para Adriana, o projeto foi um divisor de águas na sua trajetória enquanto artesã. “O projeto me ensinou coisas que, há dez anos como artesã, eu não sabia fazer. É muito bom hoje eu poder fazer as minhas peças e tirar o meu dinheiro extra, para mim é gratificante”, disse a aluna. Hoje, ela já fabrica as próprias peças e consegue garantir o seu sustento com o artesanato.
De sonho a legado: a luta de Bernadete por seu povo.
Mãe Bernadete, carinhosamente apelidada de Berná por Claudineia, deixou mais que um legado de empoderamento, mas sobretudo, de amor, nos corações do seu povo. A líder quilombola foi a responsável por apresentar à artesã o caminho da educação e afeto ancestral. “Não fui eu que encontrei Bernadete, foi ela que me encontrou. Ela me escolheu”, afirmou Claudineia.
Bernadete foi o impulso e a motivação responsável por levar Claudineia ao caminho que trilha hoje. “Eu tenho mãe, sim, mas a mãe que eu conheci foi Bernadete. Foi a mãe que me ensinou, que me botou na escola, que me disse para estudar, para ter conhecimento” afirmou Claudineia. Juntas durante toda a vida, Claudineia esteve com Bernadete até o fim de sua vida. “Tudo que eu sou hoje: mãe, mulher, artesã, isso veio de ‘Berná’. Foi ela quem disse: Você é capaz, você pode chegar longe”, afirmou.
Segundo Claudineia, para a mãe Bernadete correr não era o suficiente quando ela sabia, desde o princípio, que as mulheres de pitanga dos palmares podiam voar. “Quando eu dizia que eu ia desistir, ela falava: ‘Não! Mulher Guerreira não desiste’ e sempre me colocava para cima”, disse a artesã.
Ver o propósito de mãe Bernadete ganhando vida nos quilombos é o que motiva Claudineia a continuar trabalhando com tanta dedicação no projeto. “Para mim, vale a pena porque é o projeto dela, ela quis fazer o Mulheres que fazem para as mulheres terem independência, ter a sua renda e não depender de ninguém para nada. Para mim, é um grande legado que eu vou levar até o momento que Deus disser: ‘cessou aqui’”, garantiu Claudineia.
Para Jurandy, o projeto honra o legado de sua mãe ao dar continuidade ao sonho e ao propósito que ela defendeu durante toda a sua vida. “Mãe Bernadete foi uma defensora incansável dos direitos humanos, ativista do movimento negro. Esse projeto fica como honraria para ela, é a continuação do seu legado, que proporciona o empoderamento feminino pelo qual ela tanto lutou”, disse.
Dessa forma, o projeto “Mulheres que Fazem” se consolida como uma importante ferramenta para a manutenção e continuação da cultura quilombola, transformando a vida das mulheres de pitanga dos palmares, proporcionando autonomia financeira, autoestima e empoderamento através do artesanato, que resgata os saberes ancestrais do quilombo, enquanto fortalece a economia local.
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